Ao longo do último ano essa newsletter aconteceu e desaconteceu de tantas maneiras (breves e cheias de desculpas por estar interrompendo o silêncio da sua viagem), que finalmente me ocorreu que a única maneira de fazer a coisa andar é fingindo que isso não é uma newsletter em absoluto. São umas palavras. Que eu escrevo, e quem quiser pode ler. De vez em quando abro a mais antiga de minhas contas de email e vejo, como vestígios de uma vida passada, as notificações do Livejournal. A quem se destinam? Com quem o Livejournal está falando em 2023? Acho que nem ele sabe. Mas os emails continuam chegando, em sua regularidade reconfortante, e cada um deles me traz de volta aquele sentimento tão específico que nunca mais experimentei com qualquer outra plataforma ou rede social: um senso de comunidade que talvez seja possível aqui, e talvez seja alcançável apenas se a pessoa se mudar para uma estrada com o total de 3 vizinhos e começar a cultivar os próprios tomates. Estando a segunda parte do plano encaminhada (ainda que um pouco entediada por comer tomate todo dia), achei por bem agora focar na primeira. Só para garantir.
Brincadeiras à parte, o primeiro ano pós mudança é sempre o mais difícil. Ser apresentado à mudança de estações em um lugar novo envolve abrir mão do diminuto conjunto de informações que você colecionou a respeito daquele lugar, uma vez e mais outra e mais outra. É a quebra de uma logística que mal durou 3 meses e que portanto nem pode ser chamada de rotina. Não me entenda mal, se tem alguém aqui que beira a histeria com folhas mudando de cor essa pessoa sou eu. Mas na vida do imigrante isso vem com um esforço adicional de adequação que minha nossa. Especialmente quando a pessoa está vivendo em estado de impermanência há 2 anos.
Em 2021 eu sabia quem era e onde minha vida se encontrava. Eu não gostava do que sabia. Mas sabia. De lá para cá nunca mais soube de mais nada. E o preço desse não-saber é altíssimo. Desde 2021 os anos têm sido uns anos. Cada qual à sua maneira, mas todos compartilhando essa sensação de constante transitoriedade. Primeiro me mudei. Depois fui e voltei da Inglaterra para o Canadá 3 vezes. Então para o Brasil pela primeira vez desde a pandemia. E de volta para o Canadá, agora com todos os pertences que pude enfiar em 3 malões e 3 caixas (mais um gato). No próximo ano-e-meio vamos nos mudar novamente. Por mais estranho que pareça, não é tanto o ciclo de empacotar e desempacotar que acaba com o prumo da pessoa, mas a sensação de que não é hora de mexer em qualquer sentimento que não seja prático. A gente desaprende a fazer pausas. Tem uma parte minha que está sentada na beira desse sofá metafórico, 24 horas por dia crendo que será preciso levantar para fazer outra coisa qualquer. Isso é como que a morte da contemplação, uma triste incapacidade de executar o dolce far niente - e algo que nem em meus devaneios mais selvagens achei que seria um problema em minha vida.
Então eu ando. E embora seja uma pessoa que acredita na soberania do Google Maps em todas as ocasiões, não entendo muito bem como ele funciona porque sempre esqueço - ou escolho esquecer - que ele não está me mostrando a profundidade das coisas. Ele me mostra linhas retas. E aí eu vou e descubro que o caminho não é reto. Será toda a minha vida nesta terra um amontoado de metáforas extremamente literais? Socorro. Nessas eu estava indo para um lugar que achei que era perfeitamente possível e na verdade era uma estrada sem acostamento, que ficava num morro, e precisei me encolher nos arbustos porque não sei a hora de parar de insistir, tenho esse problema adicional. E cada vez que um carro passava eu aproveitava o vácuo para dar uma corridinha e vencer alguns poucos metros até o próximo carro vir e eu ter que me grudar nos arbustos de novo, sucessivamente, até atingir o topo do morro. Aí quando cheguei no topo tinha um esquilo com a cabeça esmagada. Memento Mori. Sei lá, às vezes me sinto a Bella do Crepúsculo quando é abandonada e começa a fazer as coisas mais absurdas e autodestrutivas só porque acha que está recuperando alguma coisa. Só que no meu caso nem sei o que estou tentando recuperar.
E é por isso que estou cogitando comprar uma bicicleta.
A própria Courtice - um pedacinho de chão entre Oshawa e Bowmanville que está sendo comido pela especulação imobiliária - é um estado transitório entre dois lugares, mais do que um lugar em si. Me peguei pensando que todos os termos que considero “pejorativos” em minha descrição de Courtice são palavras que uso para descrever minha própria experiência. E se estou aqui para fazer as pazes com essa percepção ou apenas chegar a algum impasse novo com ela ainda não sei dizer. Por enquanto me darei por satisfeita em descascar a cebola do meu subconsciente em público nessa newsletter. Depois veremos.
Para recompensar a paciência do leitor fiquei pensando que seria de bom tom oferecer um poema de despedida. Como oferecer poema é em si um clichê, vou pedir truco e colar logo uma Mary Oliver. Porque ela está batizando essa temporada da newsletter, e porque todo mundo pode usar uma dose extra de arrebatamento nessa vida.
You do not have to be good.
You do not have to walk on your knees
for a hundred miles through the desert repenting.
You only have to let the soft animal of your body
love what it loves.
Tell me about despair, yours, and I will tell you mine.
Meanwhile the world goes on.
Meanwhile the sun and the clear pebbles of the rain
are moving across the landscapes,
over the prairies and the deep trees,
the mountains and the rivers.
Meanwhile the wild geese, high in the clean blue air,
are heading home again.
Whoever you are, no matter how lonely,
the world offers itself to your imagination,
calls to you like the wild geese, harsh and exciting -
over and over announcing your place
in the family of things.Wild Geese - Mary Oliver
Eu adorei a metáfora do Google maps. Ficamos tão preocupados em seguir o caminho que aquela vozinha virtual nos fala, direcionando o caminho (e baseado em que? No caminho mais longo pode existir um aglomerado de flores) que esquecemos de olhar o céu. Sentir o mundo, e permitir uma estrada para nossa alma, ao invés de insistir e insistir nos caminhos já explorados.
Continua a newsletter! Pelo amor de deus. Aqui no Brasil todos os tomates estão verdes e fibrosos, então aproveita os seus !!
Também espero um dia deixar de ter instagram. <3